Nesse dia não
acordei sorrindo. Acordei com os lábios leves para dizer o que era necessário
falar. Estavam as palavras soltas para formarem as frases que desejassem, sem
amarras de convencionalismos, de regras – feitas por quem? –, de medos da não aprovação.
Elas diziam “não”, “sim”, “eu te amo”, “adeus”, “volte”, “dane-se” e sem peso
algum fluíam naturais como águas de corredeiras que no final encontram o mar,
sem receio de serem o que são. Se fossem frias, congelaria quem as tocasse; se
fossem afiadas, cortariam a pele; se fossem brasas, em fogo logo tomariam o
corpo. Nesse dia permiti que elas fossem verdadeiras, sem fingir afeto, ou
receio, ou qualquer contenção. Tudo era real e elas diziam o que deviam dizer,
não o que os ouvidos queriam escutar.
Não levantei com
o pé direito, levantei com todo corpo, firme no chão. Reclamei de alguma dor
nas costas, ou de algum cão vadio na madrugada. Deixei que a água morna caísse
sobre mim e me despertasse daquilo que ainda queria ser sono. Olhei no espelho
e vi meus olhos fundos, minha barba por fazer e tantas outras marcas – do
tempo, da idade, da angústia e da vaidade. Passei a mão pelo rosto e senti que
aquilo tudo era eu, cada detalhe. Não era o que falavam, não era o que
supunham, não era o que imaginavam. Era o que era e estava bom assim; com meu
cheiro de sempre, o modo de partir o cabelo, as meias trocadas, assim como os
cadarços de meu tênis. Em minha mochila levei coisas que muitos diriam
desnecessárias. Mas eram as certas para mim. Não me senti pronto, entretanto
estava preparado: se aquela fosse a hora, seria aquela. E pronto.
Naquele dia o sol
ainda não brilhava e um vento frio cortava meus braços, meu rosto. As pessoas
não me deram bom-dia, e nem eu a elas. Mas não as quis mal; desejava a melhor
da sorte a todos, silenciosamente, da maneira que apenas o coração sabe fazer.
Desejava olhar em seus olhos e dizer: “E então? Como foi a vida até aqui?”
Observava-as, com um olhar longe, e instintivamente queria que tudo se
resolvesse. Porém, logo dobrava a esquina e a vida continuava. Fechei os olhos
e sentia cada parte de meu corpo; não estava totalmente descansado, ou
recuperado de outras brigas, ainda queria um enorme sossego. Toquei então em
minha maior ferida e acordei de repente, dizendo-me que a luta ainda não havia
acabado e que é necessário um pouco mais de esforço para se alcançar o
objetivo. Estive lúcido e satisfeito, sabendo que estava longe o dia de minha
desistência.
Não estive com a
mente ocupada somente por boas coisas. Os pensamentos ruins competiam
ferozmente por algum espaço. Entretanto, meu corpo continuou onde estava e não
se atirou de um prédio. Parei, larguei os livros de lado e olhei bem para o
teto. Deixei meu coração bater forte, o ar entrar nos pulmões e aquelas ideias
gritarem o quanto queriam. Permiti que se expressassem, dizerem seus nomes,
suas origens, sua forma. E quando terminaram, disse-lhes: “Vão embora. Nada
disso me interessa.” Peguei novamente os livros e continuou-se dali meu
aprendizado. Se foram embora? Não. Apenas se sentaram na platéia a observar o
espetáculo que eu encenava em um grande palco: a vida. Estão uma do lado da
outra; boas e ruins. Dou os melhores ingressos para as boas.
Foi um dia
barulhento. As pessoas gritavam, dos automóveis vinham suas buzinas, coisas
caíam, prédios eram levantados, sirenes alarmavam incessantemente. Eu mesmo
bati muitas portas, fiz barulho ao andar apressado, levantei a voz quando me
senti ameaçado, deixei alto o som da música. Meus próprios pensamentos gritavam
dentro de minha cabeça. Quando quase me misturava à bagunça lá fora, abaixei os
volumes dentro de mim. Não pude calar o mundo inteiro, mas podia acalmar minhas
próprias vibrações. Desacelerei o passo, pedi algumas desculpas, deixei de lado
a pressa, e percebi que nada disso era necessário. Chegaria ao mesmo ponto de
qualquer maneira. Senti-me tenso quando me percebi no meio daquela bagunça.
Olhei bem para todos aqueles papéis e disse a mim
mesmo: “São importantes também, mas preciso estar bem para dar conta de tudo.”
Saí, respirei um pouco de ar, parei os olhos em algum lugar longe, para nada
específico. Estava cansado de olhar para as formas. Aqui dentro não havia forma
alguma e era bem melhor do que todas as razões cá fora existentes. Levantei uma
enorme placa escrita “pare” para mim mesmo e organizei os pensamentos. E logo,
o que não pude resolver em horas, foi findado em instantes. Em ordem, tudo se
encontra.
Naquele dia me
deparei com todos os problemas e perguntas dos dias anteriores. Elas chegavam
com uma roupa nova e outra maneira de dizer: “Te peguei!”. Se permitisse, passo
a passo, diversos buracos surgiriam em meu caminho, ou quantos nós dariam em
minhas pernas as cotidianas questões. Naquele dia nenhuma resposta me foi dada
quando me pediram um resumo da matéria, ou nenhum letreiro se acendeu indicando
a solução quando acabei aquele relatório. Nos artigos, nos telefonemas, nas
conversas, nos toques acumulei apenas dúvidas. Como se já não bastassem minhas
próprias.
Naquele dia nada
foi fácil. Os dedos continuaram apontando para mim, como se delatassem sob
minha pessoa toda a culpa existente nos erros. As pessoas não me viam, mas sim
um espelho onde enxergavam seus próprios defeitos. Diziam tantas palavras sobre
coisas que não entendiam para se enganarem sobre quem não eram, gritavam tentando
calar as vozes dentro de si dizendo: “Esse não sou eu. Agora, largue tudo isso
e vá! Ainda há tempo!” Foi um dia onde um tropeço me lembrou de que posso cair
a qualquer momento, aquela dor de cabeça mostrando que é igualmente essencial
saber parar, o frio na barriga como exemplo de meus medos e logo meu próximo
passo, navalhando-o como fogo faz ao gelo.
Entretanto, nesse dia fui sincero e dei conta
apenas do que conseguiria. Disse não para as coisas que realmente não queria e
aceitei os que recebi. Aceitei que algumas coisas não vão embora assim tão
rápidas, e que ainda por muito elas arranharão a pintura de minha alma – aquela
que renovo todos os dias. O importante mesmo é repintar as partes velhas. Se
ando torto, continuarei torto. Se tenho minhas manias, manias continuarão. Se
ainda não esqueci detalhes do passado, um dia os júbilos do presente os
tornarão cinzas. O amor dela, que ficou depositado no coração meu, que faça
crescer bonitas flores. Não tenho medo de dizer que não consigo, ou que não
tirei uma nota tão boa quanto a sua, ou que não vou naquela festa. Consigo me
dar bem com isso. Em alguns dias fugirei das pessoas, outros não. Às vezes
minha companhia é das melhores; as outras nem tanto. É preciso um tempo para
colocar a casa no lugar, tirar a poeira de tudo. Não posso receber visitas de
outra maneira.
Os dias são como
são, assim como a vida é. Aceito. E deste modo está tudo certo: os relatórios
ainda vão me entediar, em algumas noites não vou sentir sono, sentirei preguiça
e você verá em meus bocejos, me verá tão animado que será necessário pedir que
me aquiete, e em tantos outros dias vou sorrir, mas um sorriso tão escancarado
que ninguém vai ouvir. Esse grito, esse apelo da felicidade, essa parte da paz
sagrada ecoará somente aqui dentro.
Gabriel Costa
03/07/2013
Você sente e escreve bonito. Quero te ver sempre assim, feliz. Entrego, confio, aceito e agradeço.
ReplyDeleteContinua a surpreender!!!
ReplyDelete