Sunday, December 6, 2015

Dias quentes

Mesmo abraçados, com meu rosto colado em suas bochechas macias, conseguia olhar em seus olhos. Como se naquele momento meu corpo quisesse estar unido ao seu e ao mesmo tempo a observar. Tão claros contra a luz do sol, que agora se punha, banhando o mundo com aquela sensação de mais uma batalha vencida. A história cotidiana do "um leão por dia". Como ela era linda! Seus traços finos, seu nariz perfeito, o modo como as mechas de seus cabelos caíam sobre seus olhos. Tudo me fascinava, não deixava escapar nada. Minhas mãos andavam pela sua pele tentando registrar cada parte, cada detalhe daquele oásis que ela se tornara à minha sede de amar. Mas era também a vontade de agarrá-la para que não me deixasse.

Aqueles olhos. Como me impressionavam! Eles diziam tudo, e naquele dia falavam: "Estou indo embora. Acho que não pertenço mais aí dentro, no seu coração." E me via em um conflito angustiante: não queria aceitar essa verdade, porém não queria perder um segundo sem contemplar aqueles globos marrom-claro. Até mesmo seu cheiro despedia-se de mim. Que inferno! Nem tempo suficiente havia para dizer adeus; devia escolher as melhores palavras, os melhores gestos, o melhor de mim. Você acha que consegui?

Duas vezes não. Não queria deixá-la ir uma segunda vez. Assim, de repente, como se fosse natural ver nossos amores se afastando quilômetro por quilômetro. Mas o que fazer nessa hora? Lágrimas, rosas, palavras são muitas vezes o que dispomos como recurso. Um tanto dramático - sempre achei - mas quem é que não vive sem um drama? Trocaria isso tudo por uma corda e a amarrasse a mim? ou uma daquelas colas "cola tudo"?

Não. Queria que ela ficasse por vontade própria. Enxugando nossas lágrimas, admirando as rosas e as palavras. Dizer que queria vê-la com outro alguém seria mentira. Querê-la bem? Sim. Porém, naquele momento isso correspondia a ficar ao meu lado. Sei que as coisas não são assim. Temos impulsos egoístas nesses momentos; talvez algo de um instinto animal, primitivo de autoconservação, essa ancestralidade de forma inconsciente querendo nos preservar da solidão. A verdade era: fiquePor favor, fique. Estamos cansados de nos debater nestas paredes estreitas da angústia. Mas sabe como é; essa era a minha verdade. O velho eu egoístico.

O ambiente ali era de despedida, tinha que aceitar. Aqueles olhos que me abriam as portas do meu ser para os melhores sentimentos, eram os mesmos que diziam que estava saindo. E assim estava; aberto, disposto, pronto. Quanta coisa de uma vez só! Meu corpo doía, não dormia direito, não o dava trégua. Cansado, larguei-me de seus braços e me recostei no banco. Não consegui me sentir confortável. Estava abafado. Olhei novamente o sol se pondo atrás dos prédios e árvores (até essa visão escapava de mim) e percebi como havia diferença naquelas duas atmosferas: lá fora a vida corria solta; entre nós, parecia que o ar acabava aos poucos, em breve nos eliminando da existência.

Peguei-me pensando em como os dias estavam quentes ultimamente. No meio daquela bagunça, pensava na possibilidade de ir trabalhar mais à vontade: chinelos, regata e bermuda. Poderia haver aquelas máquinas de doces e bebidas. Seria interessantíssimo. Dessa maneira, talvez não estivesse tão cansado assim. Pude sentir até um certo alívio ao fechar os olhos. Estava ali imaginando uma situação utópica, onde parecia não existir problemas. Com meus pés sem o aperto do sapato, ouvindo uma boa música e alguns trocados para minha fantástica máquina de guloseimas. Agora, reflito sobre aquelas pessoas que perdem de forma drástica seus entes queridos. Durante um velório saber que o chuveiro queimou, ou que o açúcar acabou, a TV não sintoniza o canal de filmes. Imagine só.

Claro que é algo de absurdo se preocupar com miudezas diante de uma situação dessas - dias quentes? Como assim rapaz! -, mas veja a maravilha disso tudo: são os detalhes do cotidiano nos colocando as rédeas, devolvendo-nos ao rumo certo (seja lá o que isso representar). É a vida se ajeitando timidamente. Hoje é o chuveiro estragado tomando seu tempo, amanhã a fila do banco e depois, e depois, e depois esse tipo de coisa vai tapando os buracos. "Mesmo que uma situação seja desagradável, separe a situação do momento, e se entregue ao momento, ao agora. [...] Situações difíceis não geram sofrimento; a resistência é que gera sofrimento. Quando você põe resistência, a mente inconsciente percebe a situação como intolerável", tais sentenças caíram em minhas mãos algumas semanas atrás. Não vejo melhor aplicação (ou explicação) a esses momentos fora destas ideias. A situação é horrível; aquele aperto interminável no peito. Porém, olho novamente para o sol (que não se põe nunca!), os passos apressados, o semáforo, os bares começando a distribuir suas mesas e cadeiras e percebo o todo. A questão central: a vida continua! Do jeito que queremos? Nem sempre - não tenho minha máquina, meu tênis me aperta, transpiro dentro destas roupas. Vai ver o dono daquele bar queria ser pintor, vai saber. 

Dói continuar desta forma; saber que não será mais você a confortar a pessoa amada. Entretanto, todos terão seus próprios chuveiros para consertar. Doeu quando a beijei e sem dizer uma palavra, fui embora. Percebi que meus esforços já não nos levaria a lugar algum. O desejo da união deveria ser compartilhada pelos dois. Queria ter a habilidade de desfazer os nós que dizia amarrar seu coração, como queria. Bem que tentei à minha maneira. Mas devemos saber a hora de baixar as armas e encarar a derrota; é mais sábio do que ficar apanhando eternamente. Temos que saber a hora de parar com o sofrimento. Persistimos em assuntos já há muito finalizados - mas nem sabemos. Deixe estar.

Andei pelas ruas com os passos pesados. Sentei-me, sozinho em minha sala naquela hora do dia. O sol finalmente havia dado lugar à noite, foi embora - como ela. Daqui a pouco eu mesmo deveria ir. Olhei ao redor: as paredes brancas pálidas, o silêncio, objetos, o ar viciado pairando. Prestei atenção em minha respiração e percebi como agitado estava meu corpo. Queria descansar desesperadamente, parar de ter que lutar constantemente contra coisas que pareciam imbatíveis. Lembrei-me que nesses dias quentes não parei para aproveitar o ar-condicionado dali. Vi na tela do computador que haviam sete e-emails para responder, um apresentação para terminar, relatórios a fazer, problemas a erradicar. Lembrei-me de como havia dito: "...é porque te amo" e do outro lado, ela ficara em silêncio. Meu velório havia sido dentro daquele carro, observando o sol, os bares, o calor, sem saber como guiar os pensamentos. Larguei minha mochila, esparramei-me ainda mais, desliguei as luzes e fechei os olhos, enquanto refrescava-me naquele fim de noite, começando a consertar meu próprio chuveiro.

Gabriel Costa
04/09/2015

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